Por uma Pedagogia Inclusiva e de Ação – Questão de Opinião


Observando as culminâncias dos projetos ao longo dos anos pude presenciar cenas que me deixaram um tanto quanto intrigada. Quando falo observando é porque de fato, parei analisei e refleti. Hoje posto pra vocês algumas situações que ficaram em minha memória..

        A culminância do Projeto Contos de Fada é uma das ocasiões em que as escolas têm o apoio dos pais integralmente, não no sentido de apoiar os filhos, de explorar a leitura ou releitura da obra de problematizar o conto de estimular a criação de novos desenhos a  fim de explorar o potencial artístico da criança . Não, isso tudo é relegado a  segundo plano, isso tudo é dispensável diante do que os pais realmente pretendem fazer que é, vestir os filhos com as melhores roupas para assim disputarem entre si quem pode mais , quem tem a criança mais bonita, quem pode vestir o filho com a melhor roupa. Muitos dirão:-  Certamente não é um crime!
Quando uma atividade escolar, ainda que de forma indireta estimula o preconceito e a discriminação está cometendo um crime; ou na construção do saber negligencia o magistério como ferramenta da desconstrução do preconceito e da discriminação também comete um crime ético.

“Aprender a ser cidadão é, entre outras coisas, aprender a agir com respeito, solidariedade, responsabilidade, justiça, não violência; aprender a usar o diálogo nas mais diferentes situações e comprometer-se com o que acontece na vida coletiva da comunidade e do país. Esses valores e essas atitudes precisam ser aprendidos e desenvolvidos pelos alunos e, portanto, podem e devem ser ensinados na escola”. (BR Ministério da Educação – Secretaria de Educação Fundamental. Ética e Cidadania no convívio escolar. Brasília, 2001,pg 13)

           Mas  o que se percebe no espaço escolar é que os pais, com total apoio dos professores, estão mais preocupados consigo mesmos, com seu conforto do que , de fato, com a educação de seus filhos, com seu aprendizado, com as experiências que terão e que farão diferença em seu futuro. Me parece que estamos, como pais, ajudando a fixar um padrão elitista, racista e individualista. Estamos dizendo a nossos filhos. Você vale mais , pois pode vestir-se melhor que seu colega!
          De qual modo muitos professores acabam contribuindo para que isso ocorra?
Quando em lugar de explorar o tema dentro do campo pedagógico acabam por apenas tentar agradar os pais satisfazendo sua necessidade de auto-afirmação e superioridade sobre os demais moradores da localidade.
         Muitos, por falta de competência ou de firmeza, acabam por esquecer que:

” Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo” FREIRE 2011

           E acabam corroborando de forma direta com o comportamento preconceituoso ao criar eventos que estimulam a prática da discriminação deixando de lado o fazer pedagógico da intervenção  direta na costrução do saber ético, ou seja, quando eu. enquanto educador, promovo situações ou eventos sem um planejamento metodológico que deixe claro a real intenção educacional acabo por promover apenas um desfile de moda que em nada contribui para o crescimento do todo, desfiles de moda para alguns, para aqueles quem têm condições, pois os demais apenas como observadores  sentem-se pequenos, marginalizados, excluidos, desprezados pela comunidade escolar, uma vez que não se encontram dentro dos padrões que a sociedade estabelece e que a comunidade escolar passivamente aceita e apoia.
          Na última festa de escola que fui, no encerramento do ano passado, percebi uma mãe com uma criança da creche no colo . A criança tinha por volta de 2 anos e meio e estava visivelmente incomodada com a coroa na cabeça, ela chorava e tentava livrar-se do acessório que certamente estava machucando seu couro cabeludo, pois estava fixado com grampos. A maquiagem no rosto da criança era muito forte, muito batom, sombra, rímel, blush e o vestido para um dia de calor no sertão da Bahia era pavoroso, cheio de babados, tules e muito tecido em uma temperatura de 40° na sombra com meia e sapatilha a criança reclamava e a mãe simplesmente ignorava. A criança arrancava a coroa e a mãe colocava novamente . Por fim ela dormiu, cansada de tanto chorar e reclamar e mãe foi levar a boneca pra casa. Sim, pois boa parte dos pais trata os filhos como bonecos, não importa se está calor, não importa se a coroa machuca, não importa se maquiagem não deixa a pele da criança respirar, importa desfilar com a “boneca” para que todos possam ver que belezinha.
          Em outras ocasiões chegam as mamães com seus príncipes que não querem nada mais que empunhar suas espadas e ficarem brincando no pátio, mas não podem brincar, precisam estar impecáveis para ostentar a roupa cara que mamãe comprou.
        É um verdadeiro desfile de príncipes e princesas com a pura finalidade de deixar mamãe e papai confortáveis diante dos que podem menos.
      Por falar em desfile…
      Quando estava estagiando em 2001 , na organização do desfile de 7 de setembro, pude ouvir coisas do tipo:

– A filha de fulana é perfeita pra ser a Branca de Neve , a mãe dela já vai comprar a roupa e não precisamos nos preocupar e a menina parece uma princesa, é branquinha bem cuidada…
– A filha de fulana pode ser uma índia compramos sacos de estopa, fazemos uma roupinha e tá bom… Ela não tem dinheiro pra comprar nem comida.
– A filha de fulana vai ser balisa, ela tem o corpo lindo, cabelos lisos, vai ser uma linda balisa.
– A filha de fulana vai ser uma florzinha, tão fofinha , pele rosadinha , vai ficar uma fofura.
E eu fico de cá olhando e indagando…  No dia do desfile e  ajudando a vestir as crianças, eu perguntei:
– Temos mais uma roupa de florzinha, posso vestir a filha de fulano? (detalhe, filha da família mais pobre da região).
– Não, ela vai ser uma índia, a roupinha de saco de estopa está ali.
– Mas eu tenho uma flor bem aqui, dá certinho no rostinho dela.
A menina sorri,quer ser uma florzinha, mas a professora não deixa.
Ela não pode ser uma florzinha … Ela é pobre…
          Ficou estabelecido nas entrelinhas que a ala das princesas é a dos que possuem melhores
condições e que podem comprar vestidos caros , são os de pele branca, de elite de cabelos lisos. A ala dos índios vestidos de estopa, ou papel metro é a ala
dos esfarrapados sociais em sua quase totalidade negros, pobres de cabelos crespos. 
           Há coisas que não precisam ser ditas, elas são vivenciadas da maneira mais podre que pode se ver. O fato de presenciar tal absurdo e nada poder fazer a respeito deixou-me frustrada e anos mais tarde pude encontrar uma frase de Freire com a qual me identifiquei profundamente e considero que deva ser a atitude de todo e qualquer professor que busca em sua profissão sua realização profissional e seu crescimento enquanto ser humano.

Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”

          Sai daquele sete de setembro lembrando que desfilávamos no ínicio dos anos 90  todos com a farda da escola … Do ponto de vista da organização de eventos pedagógicos, não tinha preto, branco, rico, pobre, bonito ou feio. Éramos todos iguais ainda que o modelo de educação não fosse o ideal, pelo menos o preconceito e a discriminação no fazer pedagógico dos eventos escolares não eram tão evidentes, por isso mesmo não eram sentidos pelo corpo discente.

         Éramos organizados por turmas e em fileira marchávamos e cantávamos o Hino Nacional… Sem banda de Fanfarra, sem super produções, mas felizes, com a clara evidência de que éramos todos iguais.
         Me enoja a forma como o preconceito, racismo vão sendo disseminados em sala de aula descaradamente através do que se cola na parede da escola do que se fala durante a leitura de um livro , do que se impõe que o aluno vista ou faça. E aqui cabe um relato que ouvi na faculdade outro dia de uma de minhas colegas

“Ao sortear para o Projeto Contos de fada uma de minhas alunas para ser uma das princesas percebi que ela ficou triste:
– Por que vc está triste?
– Pró eu não posso ser princesa… Olhe o meu cabelo… não é cabelo de princesa e eu não tenho a cor de uma princesa… Não posso me vestir com vestido de princesa!”

        No livro Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire (p.37) “…a prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia”.
        Refletindo: Será que não estamos contribuindo para fixar ainda mais na mente das crianças um perfil elitista e estereotipado ou  na contramão da emancipação estamos reafirmando a alienação naqueles que já sofrem o preconceito?
       Será que nossos lindos painéis não retratam belas moças loiras de olhos azuis e cabelos lisos?
 E será que em nossos projetos estamos mais focados no pedagógico do que na reprodução de certo modelo “imposto” pela mídia? 
       Será que realmente estamos preocupados com a formação educacional e psicológica de nossos alunos ou estamos apenas tentando agradar seus papais que acabam por interessar-se pela escola apenas nas culminâncias de determinados projetos onde podem vestir seus filhos com as melhores roupas, sapatos, enchê-los de maquiagem e desfilar com eles na frente dos demais ,a  fim de exibir seu poder econômico?
Fica a reflexão e o lamento de uma criança que por conta de ser negra e ter cabelo cacheado aos 5 anos de idade não se sente digna de vestir uma roupa de princesa.
De quem é a culpa?

Dos pais que não estimulam nos filhos comportamento não preconceituoso.

Da sociedade que conserva um comportamento discriminatório.

Do governo que alheio a tudo isso em seu modelo mercantilista contribui para o crescimento das diferenças sociais.

E dos professores que , enquanto interventores não se posicionam
eticamente de modo a criar formas metodológicas e pedagógicas de combate
a tais práticas.

         Em contra partida, deixo aqui minha profunda admiração aos professores esperançosos, éticos, humanos e profissionais que, remando contra a maré, também procuram , junto com os esfarrapados sociais lutar por sua emancipação e através de sua prática pedagógica mudar o mundo a sua volta.

É esta força misteriosa, às vezes
chamada vocação, que explica a quase devoção com que a grande maioria do
magistério nele permanece, apesar da imoralidade dos salários. E não apenas
permanece, mas cumpre, como pode, seu dever (FREIRE).

Por Gi e Davi Barbosa