Educação infantil indígena: o que é melhor para os curumins?

O oferecimento de educação infantil para as crianças indígenas tem suscitado muitas críticas e um intenso debate entre especialistas, lideranças e povos indígenas. Muitos defendem que a educação infantil atenta contra as tradições indígenas, mas algumas comunidades indígenas têm reivindicado espaços educativos para suas crianças pequenas. 

Bernardete Toneto | São Paulo/SP
Educação infantil indígena: o que é melhor para os curumins?



     O papel, antes branco, se tingiu
de verde. No centro, uma bola
amarela. E mais nada. Corria o ano
de 2003. Naquela manhã, quando
viu o desenho, Maximino Piranicaiuã
levou um susto. Professor
de classes de educação infantil
em Dourados (MS) desde 1999,
ele tinha incentivado as crianças
a desenharem suas casas. Diante
da arte do menino de 5 anos,
cuja casa não tinha paredes e sim
matas verdes e o sol amarelo, ele
parou para pensar em sua própria
infância na aldeia guarani-kaiowá.
Lembrou dos parentes
reunidos no terreiro, das histórias contadas pelos ancestrais,
dos bebês no seio da mãe,
do fogo sempre aceso aquecendo
as conversas. Comparou essas
lembranças com a sala de aula
de apenas uma janela. “Percebi
que nossos planos de aulas estavam
totalmente errados”, recorda.
Para ele, os curumins não deveriam
estar na escola. 

     A preocupação de Maximino
é a mesma de pais, lideranças e comunidades indígenas, professores,
especialistas em educação
infantil e em educação indígena
e também da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização
e Diversidade (Secad), do MEC.
Diante da indefinição de projetos,
das práticas pedagógicas, da
infra-estrutura inadequada e da
falta de formação de professores
específicos para os pequenos,
sobram indagações em relação à
educação infantil indígena.
A Lei de Diretrizes e Bases
(LDB), de 1996, reconhece a educação
infantil (oferecida em creches,
para crianças de 0 a 3 anos,e em pré-escolas, para crianças
de 4 e 5 anos) como a primeira
etapa da educação básica e determina
que é obrigação do Estado
oferecer este nível de ensino
para todas as famílias que buscarem
vagas para suas crianças. 

    Entretanto, ainda não foram encontradas
respostas para a implantação,
nas aldeias, das Diretrizes
Curriculares Nacionais (DCN)
para a educação infantil, que determinam
o respeito às diversas
identidades das crianças e suas
famílias, sem qualquer tipo de exclusão,
até mesmo a de etnia. 

    “Cada povo tem o seu jeito de
cuidar e educar as crianças, de
acordo com a sua mitologia de
origem e sua cultura”, diz Francisca
Pareci, coordenadora do
Programa de Formação de Professores
Indígenas de Mato Grosso.
Um exemplo está na própria
nação Pareci, um dos 39 povos
indígenas do Mato Grosso: o avô
paterno é responsável pela educação
do primeiro neto, a quem
vai contar, em detalhes, as histórias
das pessoas que foram
pássaros. Quando o dia ameaça
nascer, as crianças pequenas são
levadas para a beira do rio, para
ouvir o cântico dos passarinhos,cada um deles remetendo à humanização
dos antepassados. 

    Para os indígenas, a educação
não é responsabilidade só do pai
ou da mãe, mas de todos os parentes,
principalmente dos avós,
que repassam oralmente a sabedoria
do povo, desde o nascimento
do bebê. Com pequenas
diferenças, as diversas nações
valorizam a sabedoria dos patriarcas
no processo de aprendizado
da criança. Os ensinamentos
são repassados em meio a
brincadeiras, nas cantigas e nas
histórias de seres ligados à natureza.
O irmão mais velho carrega
o caçula nos braços e o ajuda a
descobrir o mundo. Os tempos
são marcados pelo sol e pela lua
e não pela campainha da escola. 

    Em culturas em que a escola
é terra, água, fogo e ar, a sala
de aula tem pouco valor, afirma
Francisca. Primeira representante
indígena no Conselho Nacional de
Educação, Chiquinha Pareci chama
a atenção para a degradação
dos valores e da cultura indígena
na primeira infância, um fato que
segundo ela vai destruir a tradição
dos patriarcas e das matriarcas.
“Em todas as aldeias por onde
passei, os velhos se manifestaram contra a forma como as crianças
estão sendo arrancadas do seio
da sua educação”, relata. Segundo
ela, os idosos temem “ficar
iguais aos velhos da cidade, que
vão pros asilos, abandonados”. 

     Há uma grande preocupação
com a preservação dos valores
culturais da criança indígena. Por
enquanto, os princípios da educa-
ção escolar indígena (inter-culturalidade,
especificidades, plurilingüismo
e diferenciação), conquistados
pelo movimento indígena organizado
e transformados em política
pública pelo MEC, são evidentes
a partir do Ensino Fundamental.
“A lei determina o oferecimento de
educação infantil indígena. Mas o
Estado não pode anular os direitos
coletivos dos povos indígenas, de
definirem as suas prioridades, de
escolherem o que é melhor para
eles”, defende Suzana Grillo, da
Coordenação-Geral de Educação
Escolar Indígena da Secad/MEC. 

     Suzana Grillo reconhece que a
educação infantil não tem sido tratada
nos grandes fóruns de educação escolar indígena. Não foi contemplada,
até hoje, na Comissão
Nacional de Educação Escolar Indígena do MEC, na qual os indígenas
têm assento. Da mesma forma, as comunidades não são ouvidas no
momento de implantação da unidade
educativa pelo poder público
local, contrariando o que determina
a Resolução CEB 3, de 1999. 

     Chiquinha Pareci eleva o tom
ao classificar como “genocida” a
educação infantil que vem sendo
desenvolvida em várias aldeias,
em virtude da destruição dos valores
e das tradições dos povos
indígenas. A falta de terras e a
pobreza são apontadas como responsáveis
pela inserção prematura
da criança indígena no espaço escolar.
Maximino Piranicaiuã traça a
rota da desagregação familiar em
uma comunidade guarani de 12
mil pessoas, em Dourados: “Nossa
área é muito pequena. Sem
terra, os homens saem para trabalhar
nas fazendas, e permanecem
70 a 80 dias fora. As mães ficam
responsáveis pelas crianças, mas
também têm de trabalhar”. Saldo:
crianças, até bebês, vão para a
escola muito cedo, sem o contato
com a cultura de seu povo. 

     Dados do Censo Escolar 2005
mostram que, das 7.205.013 crianças de 0 a 6 anos matriculadas em creches e espaços de educação
infantil, 18.583 são indígenas de
várias etnias. Há dez anos o Centro
de Cultura Luiz Freire (CCLF),
de Pernambuco, desenvolve junto
ao povo Xukuru uma pesquisa
para traçar o perfil das escolas nas
áreas indígenas que oferecem a
educação infantil e encontra um
quadro classificado como “desolador”.
A indigenista Eliene Amorim,
mestre em educação pela Universidade
Federal de Pernambuco,
diz que criança indígena inserida
prematuramente em espaço escolar
perde a identidade. 

     Eliene é coordenadora do CCLF,
que trabalha em conjunto com o
Movimento Interfóruns de Educação Infantil no Brasil (Mieib). As
duas instituições denunciam a dimensão
que o problema vem alcançando.
Os dados preliminares
da pesquisa feita em Pernambuco
mostram que os espaços de educação
infantil deixaram as fronteiras
da zona urbana e chegaram
às aldeias na zona rural. Para as
duas entidades, as condições socioeconômicas
da maioria das comunidades
indígenas têm levado suas crianças a saírem dos espa-
ços de convivência e ingressarem
em espaços institucionalizados,
o que acaba provocando graves
danos à identidade indígena. “Em
lugar do terreiro, do convívio com
os parentes, do ambiente socializado
que marca a cultura e a cosmovisão
indígenas, eles vão para
salas fechadas, muitas vezes sem
janelas, aprender as coisas dos
brancos”, sintetiza Eliene. 

    Para Suzana Grillo, a demanda
por educação infantil indígena é induzida
por um quadro de vulnerabilidade
social. “Muitas comunidades
hoje passam por riscos, com problemas
de fome, degradação ambiental,
aumento populacional muito
grande. Projetos de educação
indígena atendem a uma realidade
socioeconômica grave, mas não
são adequadas às necessidades
sociais e interculturais dos povos
indígenas”. 

     Nem mesmo o papel do educador
é consenso. Para Elisa Pankararu,
de Pernambuco, o fato de
o professor também ser indígena
pode garantir o ensinamento familiar.
“Ele não é aquela figura que
chega de manhã, passa quatro
horas dentro da sala de aula sorrindo,
dando beijinho, dançando,
desenhando e depois vai embora.
Ele é da comunidade”. Chiquinha
Pareci discorda. “Educação infantil
indígena não pode ser feita por
uma única pessoa. Não dá para
pensar em apenas um professor.
É coisa de comunidade, de gente
reunida, de responsabilidade conjunta,
de espaços compartilhados”.
Divergências à parte, as duas, mulheres,
educadoras, mães e indígenas, concordam: educação de
curumim, na aldeia, tem de ser feita
de amor. Em comum-unidade.•

Reportagem da REVISTA CRIANÇA PORTAL MEC.


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Povos indígenas Material para estudo e pesquisa